quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Continuem aguardando, é sempre em aberto. Mas aliás, estamos falando com quem mesmo? ('continuem') Estranho isso, parece um tanto presunçoso. Que seja

Falocentrismo e Quaresma


PRÓLOGO:

Ao final do mês de Fevereiro, Tônia voltava a uma rotina convencional, da qual ela havia se afastado há mais de dois anos. A garota não era mais uma garota de hábitos noturnos. Ou pelo menos, deveria deixar de sê-lo. Final e primeiramente, ela deixaria de ser perturbada por todos os que se incomodavam com o fato de um ser humano economicamente ativo acordar todas as quartas-feiras após o meio dia. Todas as terças e quintas e outros dias, o hábito recorria.

Ela, de fato, se sentia incomodada precisamente por saber que outras atividades suas poderiam ser desenvolvidas em outros horários. Decerto, ela deveria ter uma vida sexualmente ativa. Ademais, a renda dos seus avós, administrada exclusivamente por ela, consumia pelo menos uma ida por semana à agência bancária que ocupava a esquina do quarteirão onde morava. O que ela fazia muito bem. Orgulhava-se de descumprir o trato familiar por muito pouco.

A gestão de uma quantia daquele vulto era até incompatível com a simplicidade do apartamento para o qual ela havia se mudado quarenta dias após a tragédia. Ela prezava por um espaço ergonômico, onde ela coubesse sem sobras. Devidamente encaixada. O dinheiro despendido era feito de modo modesto. E o consumido extraordinariamente se limitava a bens e obras extraordinários. Foi fácil compor a coleção Kubrick, salvo pela edição com os três curtas-metragens dos anos 50 em um só disco. A cinematografia de Capra e Lynch também lhe custou pouco trabalho, dinheiro e paciência. Árdua busca estava sendo encontrar cópias decentes de “Chove em nosso amor”, “Música na Noite” e “Crise” no que dizia ela ser o que há de melhor no Cinema nórdico.

Algumas manias demandam que criemos uma rede internacional de interação e informação, a fim de que não nos retorçamos no meio de um vagão de metrô. Ou que não busquemos outra(s) mania(s), cuja satisfação seja mais acessível. Badalados estudos são realizados periodicamente, tentando explicar o porquê de o ser humano ser tão vulnerável a vícios. Intrigante também é entender como um filo torna-se fobia. E era o que parecia acontecer com Tônia. Perfeccionista, ela não admitira que em sua cinemateca, fossem encontradas cópias deficientes de qualquer obra dos seus quatro diretores favoritos.

O senso comum e o ócio só contribuíam para aquela fissura. Então, a tendência desde o primeiro dia em que ela se sentiu quase que plenamente adaptada ao ambiente de trabalho, era que tudo isto se aliviasse.

Exatamente sete dias úteis após o início daquela nova jornada, qualquer tentativa de resistência sua sucumbiu. Imagina que ela resistira a quatro noites em casa, assistindo a tapetes humanos coloridos cobrindo avenidas cinzas. Durante tal ínterim, ela ate questionou se se tratava de distração ou meditação. Teria ela desenvolvido tal habilidade de modo autônomo? Ao som de sambas-enredos? Dificilmente...mais provável que fosse pura melancolia mesmo. A única coisa que ela realmente era capaz de ouvir eram algumas versões de Paulinho Moska, inclusive de “Retalhos de Cetim”. Ouviam-se um consolo e o consolo.



REPRÓLOGO:

Há alguns dias, Marcos transitava entre a alegria superficial inventada a partir de chanchadas da vida semi-real e a tristeza profunda instalada em cada canto de sua casa. Ele mesmo se surpreendia como poderia pensar em suicídio ao mesmo tempo em que esboçava curtos risos, aparentemente sinceros. Desde que uma seqüência de fatos indigestos cascateou sobre o rapaz, a gravidade da atmosfera parecia exercer mais pressão sobre aquele corpo que tentava se reerguer. Desde que saiu de Nova Viçosa, ainda adolescente, era a primeira vez que uma mulher o preteria.

Quando Wowereit, o “velho alemão” (que era austríaco e nem era tão velho) carregou o baiano do litoral fluminense para São Paulo, Marcos não sabia, mas aquele senhor de elegância peculiar estava disposto a se reinventar economicamente, mas, sobretudo de exercitar seu instinto de paternidade desviado por um casamento doentio. Pelo qual seus três filhos foram as piores vitimas. Ele havia deixado tudo às margens do Rio Salzach. Havia deixado seus descendentes em situação confortável. Havia desistido de amá-los e de por eles ser amado. Carregou consigo a disposição de combater a senilidade. Chegou à região dos Lagos, no litoral norte do Rio de Janeiro disposto a fazer da Ressurgência, muito dinheiro. Precisava transmitir sua doutrina de negócios, de macho, de vida para alguém, para um outro macho de preferência. E aquele moleque fugitivo apresentava ter excelente potencial: era destemido, audacioso, tinha iniciativa e era inocente.

“Às vezes nos questionamos porque esses estrangeiros vêm a nós e desrespeitam nossa hospitalidade. Porque esses estrangeiros só se satisfazem com nossa subserviência. Não há lei doméstica, nem tampouco moral universal”. Marcos refletia, mas possuía todos os motivos para agradecer a todo este status quo. Em tempo de cientistas alarmados com o clima na Terra, ele também ponderava sobre o fato de viver num lar quase “auto-sustentável” e manter a maior rede local de pesca predatória, capturando ostras com qualidade insuperável, até mesmo por aquelas pescadas na costa Peruana e Chilena. A captura daqueles moluscos e mariscos atendia a todas as exigências das melhores cozinhas internacionais. Na proporção inversa que se afinava com a manutenção da biodiversidade marinha da região. Fazia parte do perfil empreendedor do austríaco esgotar, se mover e recomeçar. Marcos havia aprendido a se mover antes de esgotar (esgotamento vindouro) e ter que recomeçar algo diferente.


A cartilha moderna dos negócios rezava a desconcentração das atividades e dos investimentos. Estava ele pleiteando uma licença para refinar a cana-de-açúcar que já estava plantada numa fazenda no interior da rejeitada Bahia. No embalo da busca por matrizes energéticas alternativas. Na busca pela manutenção da promessa de contrato com um comprador de Iowa.

“Às vezes penso em como é difícil conciliar Ética, Educação e Etiqueta. Ainda tem a tal da Estética...”. A filosofia austríaca que ele havia conhecido não alcançava tais dúvidas e indagações. E dava certo pra ele de algum jeito. “Tudo isto deve ser para atabalhoar o mundo onde o meu negócio não se junta ao teu negócio”. Ele carregava um saco de lixo dentro de seu carro movido a diesel e não admitia que qualquer rejeito fosse defenestrado daquele interior. Não se interessava por seus irmãos e vivia na incerteza de que sua mãe estivesse realmente morta. A dificuldade em conciliar Ética, Estética, Educação e Etiqueta só se enxerga quando se olha sob o ponto de vista do comodismo.

A confirmação da ida de Flávia para o intercâmbio na Nova Zelândia estava fora de suas perspectivas. Bem como, a não ratificação da Licença Prévia dada como certa. Da ressurgência já não surgia a mesma quantidade, que se manteve quase a mesma desde o começo da pesca submarina em setembro de 1999. O lastro austríaco havia se firmado em solo costarriquenho. Nada mais fazia sentido aparente para aquele carnaval. A custódia dentro do condomínio fechado era regada com pratos rápidos, refrigerantes, Thievery Corporation e Tinderstincks e pitadas de um reality show em pay per view.



Por CilvaH